Carlos António Costa Gomes começa assim a história da sua vida: "nasci no Barreiro num dia de Janeiro de 1932."
Foi um dos maiores guarda-redes do Sporting, juntamente com Azevedo e Vítor Damas. Para muitos inigualável, mesmo por qualquer uma destas reverendas figuras leoninas. Tinha um carácter anguloso e um temperamento irascível, que lhe conduziram a vida por caminhos ínvios, entre aventuras rocambolescas.
Começou no Barreirense, aos 16 anos, depois de abandonar o liceu Passos Manuel. Acabou, nas suas doridas palavras, como "um fugitivo da - tantas vezes injusta e desumana - Justiça". Como ele mesmo escreveu: "Cometi muitos erros. Sou apenas um ser humano. Fui aventureiro, mulherengo. Nunca roubei nem matei, mas a sinceridade com que sempre falei e actuei - fosse onde fosse e diante de quem fosse - destruíram-me completamente".
Carlos Gomes cresceu, no Barreiro, envolto num ambiente de forte contestação social, em que se aproveitavam dos desafios de futebol ao Domingo para sessões mais ou menos explícitas de contestação aos patrões, à hierarquia e, por arrasto, ao regime. De tal forma que as autoridades impuseram a proibição de gritos e vozerias durante os jogos, que ficaram assim conhecidos como "os desafios silenciosos".
Pouco tempo depois da estreia de Carlos Gomes com a camisola do Barreirense, ainda júnior, o Sporting interessou-se e adquiriu o seu passe por 100 contos. 50 contos para o clube e 50 para ele. Nunca ingressou, contudo, no júniores do Sporting. A sua qualidade era tal que o incluíram desde logo no plantel principal, onde sobressaía o grande Azevedo como guardião da baliza leonina. Ao que parece, nunca se deram bem. Carlos Gomes estreou-se ainda com 17 anos, frente ao Estoril Praia, e nessa época sagrou-se pela primeira vez campão nacional de leão ao peito. Era o suplente de Azevedo.
Na época seguinte, na primeira jornada do campeonato, o Sporting defrontava o Belenenses nas Salésias. Foi a 23 de Setembro de 1951, dia da estreia do grande Matateu, que, nesse jogo, meteu 4 golos a um desamparado Azevedo. O Belenenses vencia por 4-3 e as relações entre Azevedo e a direcção do clube, já de há muito deterioradas, quebraram-se definitivamente. O guarda-redes foi cedido ao Oriental e Carlos Gomes assenhorenhou-se da baliza do Sporting.
Num determinado dia foi ao gabinete do Presidente Góis Mota pedir um aumento salarial. O Presidente não gostou da insolência e perguntou-lhe se queria o dinheiro para "putas e automóveis". Carlos Gomes ameaçou bater com a porta, mas acabou por ceder com medo de ser mobilizado para guerra em Angola caso se desvinculasse do Sporting.
Foi o início de um percurso atribulado.
Alguns anos mais tarde, incompatibilizou-se com o treinador uruguaio Fernandez, ex-Real Madrid, que não tolerava os excessos verbais de Carlos Gomes. A tensão verbal descambou em agressão física, páginas tantas, e o Uruguaio acabou estatelado e desmaiado.
Na tropa, a que na altura se não fugia com facilidade, os problemas disciplinares foram também uma constante. Foi preso por 3 dias às ordens do próprio Ministro da Defesa, depois de dele ser rir num jantar oferecido pelo governante à equipa de futebol do exército. Não seria a sua última detenção. Noutra ocasião, envolveu-se numa escaramuça com agentes da PIDE e acabou igualmente nos calabouços militares.
Também na selecção nacional, onde protagonizou grandes exibições, se sucederam os processos disciplinares.
No Sporting, a presença de Carlos Gomes tornou-se insustentável após a agressão ao técnico Fernandez. O Granada, de Espanha, orientado na altura por Scopelli, antigo treinador leonino que curiosamente com ele sempre manteve boas relações, avançou para a sua contratação. Carlos Gomes trocou o prestigiado Sporting por uma equipa obscura espanhola.
Em 8 anos com a camisola verde-e-branca, Carlos Gomes conquistou 4 Campeonatos Nacionais e uma Taça de Portugal.
Envergava agora, na época de 58/59, a camisola do Granada. A transferência rendeu aos cofres do Sporting 1 milhão de pesetas e aos bolsos de Carlos Gomes 375.000. Mais do que em toda a sua carreira de leão ao peito. O Granada era contudo uma equipa modesta, que nessa época lutava desesperadamente contra a desproporção.
Carlos Gomes ganhou dinheiro mas não perdeu o temperamento: "este maldito costume de sempre dizer o que penso, sem olhar onde nem a quem, continuou-me em Granada e pela vida fora, trazendo-me novas complicações".
Envolveu-se em refregas com a comunicação social espanhola a ponto tal que a sua presença em Granada começou a ser incómoda. Transferiu-se para o Oviedo. Jogou 2 anos nas Astúrias e, durante esse período, começou a sentir dificuldades oftalmológicas, com o agravamento da sua miopia, que afectavam seriamente as suas exibições especialmente quando os desafios se jogavam à noite. Estas limitações e algumas dificuldades de adaptação à conservadora sociedade asturiana - que não via com bons olhos a sua união de facto com uma granadina enquanto continuava válido o seu prévio casamento com uma portuguesa - impeliram-no a regressar a Portugal. De preferência para um clube cujo estádio não dispusesse de iluminação eléctrica e que, portanto, não disputasse, pelo menos em casa, jogos nocturnos.
Decidiu-se pelo Salgueiros, treinado pelo seu amigo e conterrâneo Artur Baeta. O Sporting, todavia, opôs-se ao trespasse, invocando direitos contratuais sobre o jogador caso ele retornasse a Portugal. Alvalade seria de novo a sua casa, mas desta vez conseguiu extrair à direcção do Sporting algumas centenas de contos. Uma boa maquia. Não obstante tal estipêndio, as duas partes não se punham de acordo quanto ao salário e outras concessões financeiras. Neste impasse, Carlos Gomes envolve-se num episódio insólito que acabaria por forçar o seu exílio. Foi acusado de violação por uma jovem que mal conhecia e com quem tinha confessadamente mantido relações sexuais. O guarda-redes sempre clamou inocência, mas - crime ou cilada - o processo seguiu trâmites e transitou para o Tribunal da Boa-Hora, onde esteve pendente 4 anos. Estava convencido de que se tratava de um embuste preparado pelo Sporting, com quem mantinha diferendo relativamente ao cumprimento das condições contratuais que haviam estado na base do seu regresso a Portugal. Decidiu então mudar de clube e propôs ao Sporting que autorizasse a sua cedência ao Atlético, do bairro de Alcântara, a título de empréstimo. Assim aconteceu.
Os problemas, contudo, sucediam-se. Ainda na pendência do processo crime por violação, a sua mulher, espanhola, recebe ordens da PIDE para abandonar o território nacional. Tinham à época uma filha, ainda bebé, que por ser ilegítima não estava sequer inserida nos serviços consulares espanhóis. Nesta aflição, Carlos Gomes resolve fugir. "Contactei um contrabandista para me passar, assim como ao bebé. Depois, um tipógrafo que carimbou a saída de Portugal e a entrada em Espanha no meu passaporte. Logo, se conseguisse passar através das montanhas e entrar no país vizinho, estaria em regra."
O plano de fuga foi, como tudo na sua vida, rocambolesco. Durante um desafio contra o Vitória de Guimarães, simulou uma lesão e pediu para se substituído. Meteu a mulher num comboio com destino a Espanha, pegou na filha, alugou um carro e pôs-se em fuga. Com a ajuda do contrabandista consegue passar a fronteira e reencontrar-se com a mulher já em Espanha. Finalmente, partiu para Marrocos. Deambulou, como jogador e treinador, pelo Norte de África: Marrocos, Argélia (onde pediu asilo político) e Tunísia. A partir de 1970 pendurou as chuteiras e dedicou-se em exclusivo à carreira de treinador. Sempre com inúmeras peripécias, azares, contratempos e quezílias de permeio.
Voltaria Portugal muito mais tarde, já na década de 80, depois de resolvidos os seus litígios judiciais.
Morreu com doença de Parkinson em 2005. Tinha 73 anos.
Carlos Gomes cresceu, no Barreiro, envolto num ambiente de forte contestação social, em que se aproveitavam dos desafios de futebol ao Domingo para sessões mais ou menos explícitas de contestação aos patrões, à hierarquia e, por arrasto, ao regime. De tal forma que as autoridades impuseram a proibição de gritos e vozerias durante os jogos, que ficaram assim conhecidos como "os desafios silenciosos".
Pouco tempo depois da estreia de Carlos Gomes com a camisola do Barreirense, ainda júnior, o Sporting interessou-se e adquiriu o seu passe por 100 contos. 50 contos para o clube e 50 para ele. Nunca ingressou, contudo, no júniores do Sporting. A sua qualidade era tal que o incluíram desde logo no plantel principal, onde sobressaía o grande Azevedo como guardião da baliza leonina. Ao que parece, nunca se deram bem. Carlos Gomes estreou-se ainda com 17 anos, frente ao Estoril Praia, e nessa época sagrou-se pela primeira vez campão nacional de leão ao peito. Era o suplente de Azevedo.
Na época seguinte, na primeira jornada do campeonato, o Sporting defrontava o Belenenses nas Salésias. Foi a 23 de Setembro de 1951, dia da estreia do grande Matateu, que, nesse jogo, meteu 4 golos a um desamparado Azevedo. O Belenenses vencia por 4-3 e as relações entre Azevedo e a direcção do clube, já de há muito deterioradas, quebraram-se definitivamente. O guarda-redes foi cedido ao Oriental e Carlos Gomes assenhorenhou-se da baliza do Sporting.
Num determinado dia foi ao gabinete do Presidente Góis Mota pedir um aumento salarial. O Presidente não gostou da insolência e perguntou-lhe se queria o dinheiro para "putas e automóveis". Carlos Gomes ameaçou bater com a porta, mas acabou por ceder com medo de ser mobilizado para guerra em Angola caso se desvinculasse do Sporting.
Foi o início de um percurso atribulado.
Alguns anos mais tarde, incompatibilizou-se com o treinador uruguaio Fernandez, ex-Real Madrid, que não tolerava os excessos verbais de Carlos Gomes. A tensão verbal descambou em agressão física, páginas tantas, e o Uruguaio acabou estatelado e desmaiado.
Na tropa, a que na altura se não fugia com facilidade, os problemas disciplinares foram também uma constante. Foi preso por 3 dias às ordens do próprio Ministro da Defesa, depois de dele ser rir num jantar oferecido pelo governante à equipa de futebol do exército. Não seria a sua última detenção. Noutra ocasião, envolveu-se numa escaramuça com agentes da PIDE e acabou igualmente nos calabouços militares.
Também na selecção nacional, onde protagonizou grandes exibições, se sucederam os processos disciplinares.
No Sporting, a presença de Carlos Gomes tornou-se insustentável após a agressão ao técnico Fernandez. O Granada, de Espanha, orientado na altura por Scopelli, antigo treinador leonino que curiosamente com ele sempre manteve boas relações, avançou para a sua contratação. Carlos Gomes trocou o prestigiado Sporting por uma equipa obscura espanhola.
Em 8 anos com a camisola verde-e-branca, Carlos Gomes conquistou 4 Campeonatos Nacionais e uma Taça de Portugal.
Envergava agora, na época de 58/59, a camisola do Granada. A transferência rendeu aos cofres do Sporting 1 milhão de pesetas e aos bolsos de Carlos Gomes 375.000. Mais do que em toda a sua carreira de leão ao peito. O Granada era contudo uma equipa modesta, que nessa época lutava desesperadamente contra a desproporção.
Carlos Gomes ganhou dinheiro mas não perdeu o temperamento: "este maldito costume de sempre dizer o que penso, sem olhar onde nem a quem, continuou-me em Granada e pela vida fora, trazendo-me novas complicações".
Envolveu-se em refregas com a comunicação social espanhola a ponto tal que a sua presença em Granada começou a ser incómoda. Transferiu-se para o Oviedo. Jogou 2 anos nas Astúrias e, durante esse período, começou a sentir dificuldades oftalmológicas, com o agravamento da sua miopia, que afectavam seriamente as suas exibições especialmente quando os desafios se jogavam à noite. Estas limitações e algumas dificuldades de adaptação à conservadora sociedade asturiana - que não via com bons olhos a sua união de facto com uma granadina enquanto continuava válido o seu prévio casamento com uma portuguesa - impeliram-no a regressar a Portugal. De preferência para um clube cujo estádio não dispusesse de iluminação eléctrica e que, portanto, não disputasse, pelo menos em casa, jogos nocturnos.
Decidiu-se pelo Salgueiros, treinado pelo seu amigo e conterrâneo Artur Baeta. O Sporting, todavia, opôs-se ao trespasse, invocando direitos contratuais sobre o jogador caso ele retornasse a Portugal. Alvalade seria de novo a sua casa, mas desta vez conseguiu extrair à direcção do Sporting algumas centenas de contos. Uma boa maquia. Não obstante tal estipêndio, as duas partes não se punham de acordo quanto ao salário e outras concessões financeiras. Neste impasse, Carlos Gomes envolve-se num episódio insólito que acabaria por forçar o seu exílio. Foi acusado de violação por uma jovem que mal conhecia e com quem tinha confessadamente mantido relações sexuais. O guarda-redes sempre clamou inocência, mas - crime ou cilada - o processo seguiu trâmites e transitou para o Tribunal da Boa-Hora, onde esteve pendente 4 anos. Estava convencido de que se tratava de um embuste preparado pelo Sporting, com quem mantinha diferendo relativamente ao cumprimento das condições contratuais que haviam estado na base do seu regresso a Portugal. Decidiu então mudar de clube e propôs ao Sporting que autorizasse a sua cedência ao Atlético, do bairro de Alcântara, a título de empréstimo. Assim aconteceu.
Os problemas, contudo, sucediam-se. Ainda na pendência do processo crime por violação, a sua mulher, espanhola, recebe ordens da PIDE para abandonar o território nacional. Tinham à época uma filha, ainda bebé, que por ser ilegítima não estava sequer inserida nos serviços consulares espanhóis. Nesta aflição, Carlos Gomes resolve fugir. "Contactei um contrabandista para me passar, assim como ao bebé. Depois, um tipógrafo que carimbou a saída de Portugal e a entrada em Espanha no meu passaporte. Logo, se conseguisse passar através das montanhas e entrar no país vizinho, estaria em regra."
O plano de fuga foi, como tudo na sua vida, rocambolesco. Durante um desafio contra o Vitória de Guimarães, simulou uma lesão e pediu para se substituído. Meteu a mulher num comboio com destino a Espanha, pegou na filha, alugou um carro e pôs-se em fuga. Com a ajuda do contrabandista consegue passar a fronteira e reencontrar-se com a mulher já em Espanha. Finalmente, partiu para Marrocos. Deambulou, como jogador e treinador, pelo Norte de África: Marrocos, Argélia (onde pediu asilo político) e Tunísia. A partir de 1970 pendurou as chuteiras e dedicou-se em exclusivo à carreira de treinador. Sempre com inúmeras peripécias, azares, contratempos e quezílias de permeio.
Voltaria Portugal muito mais tarde, já na década de 80, depois de resolvidos os seus litígios judiciais.
Morreu com doença de Parkinson em 2005. Tinha 73 anos.
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